Religião e Moral

Benedito Beni dos Santos (1)

Resumo

Este artigo pretende oferecer alguns esclarecimentos sobre os termos moral e ética, ressaltando a importância da moral e analisando as causas da desorientação em seu âmbito. Trata-se de uma perspectiva cristã da moral, apontando a mística como a fonte mais alta de uma moral universal, a moral da vida.

Abstract

This article intends to offer some clarifications on the terms moral and ethics, emphasizing the importance of moral and analyzing the causes of disorientation in the moral ambit. It treats of the Christian perspective of moral, identifying mysticism as the highest source of a universal moral, the moral of life.

Antes de tudo, dois esclarecimentos sobre o tema dessa reflexão: religião e moral. Toda religião implica uma moral, ou seja, uma reta conduta. Com a reta conduta, o crente procura fazer a vontade de Deus, agradar-lhe. Os profetas do Antigo Testamento consideram a prática da justiça como culto prestado a Deus. De outro lado, toda religião apresenta sempre uma visão geral do mundo, que permite à pessoa situar-se na realidade e atuar sobre ela. Não vou tratar da relação da religião em geral e a moral. Tratarei de uma forma determinada de religião: o cristianismo enquanto assumido e vivido pela Igreja Católica.

O outro esclarecimento refere-se aos termos ética e moral. Na prática, são equivalentes. Teoricamente, porém, são distintos. A moral é uma atividade prática. Designa o conjunto de normas referentes à reta conduta humana, ou seja, o bem a ser feito e o mal a ser evitado. A ética, por sua vez, é a teoria da moral, o modo de conceber a moral: a sua origem, a sua natureza, os seus objetivos. A moral é prescritiva: refere-se ao dever. A ética é descritiva. Ela não emite, como a moral, juízo de valor, mas juízo de realidade.

Vou desenvolver a presente reflexão em cinco pontos: o que é a moral, sua importância, a desorientação hoje existente no campo da moral, como a Igreja concebe a moral e a originalidade da moral cristã.

1. O que é a moral?

A moral designa, antes de tudo, aquilo que é objetivamente bom e, portanto, deve ser feito pela pessoa, independentemente das vantagens ou desvantagens que daí possam provir. Sócrates expressou muito bem esse caráter da moral quando disse que prefere ser vítima da injustiça a cometer a injustiça. Quando a pessoa assume essa postura existencial não só os seus atos são bons, mas ela mesma se torna boa moralmente. Torna-se uma boa árvore, que produz sempre bons frutos. Em outras palavras, torna-se uma pessoa virtuosa.

A moral também designa aquilo que é digno do ser humano por oposição ao que é indigno. Ser fiel a um amigo é digno do ser humano. Ser infiel é indigno. Defender a vida de um inocente é digno do ser humano. Tirar a vida a um inocente é indigno.

A moral designa ainda aqueles atos que estão não só de acordo com o dever, mas que são feitos por respeito ao dever, na expressão de Kant. Se um comerciante vende sempre pelo preço justo para não perder a freguesia, ele não coloca um ato moral. Mas, se ele vende pelo preço justo por respeito ao dever (é a sua consciência que exige isso), então o seu ato é moral.

2. Importância da moral

Na sua encíclica sobre os fundamentos da moral – Veritatis Splendor -, João Paulo II afirma que a instância moral atinge em profundidade cada homem e compromete a todos. Reflitamos sobre essa afirmação do Papa. A moral atinge em profundidade o ser humano. Segundo Jean Piaget, “o ser humano não nasce com uma moral, mas com uma aptidão para adquirir a moral”. Assim como não nasce falando uma língua, mas com aptidão para aprender uma língua. Emílio Durkheim, um dos fundadores da sociologia, sobretudo da sociologia da religião e da moral, explica a origem da moral a partir da natureza social do ser humano. Segundo ele, a moral começa onde se inicia a vida em grupo. Não é possível a vida em grupo sem a existência de normas morais. É justamente a moral que impede a tirania do grupo sobre os indivíduos. Para a doutrina da Igreja, porém, o ser humano não só nasce com uma aptidão moral. Existe uma lei moral gravada por Deus no coração humano, conforme ensina São Paulo na Carta aos Romanos (cf. Rm 2,15). A partir desse senso moral fundamental, a razão humana tem a capacidade de descobrir o bem a ser feito e o mal a ser evitado.

Afirma o Papa, que a moral compromete a todos. De fato, o ser humano só age moralmente quando pode fazer de sua ação moral uma proposta para toda a humanidade. Caso contrário, ele está agindo de má fé. Posso mentir? Pergunta alguém. Se fosse possível transformar a mentira numa lei universal, numa proposta para toda a humanidade, então seria permitido mentir. Ora, numa sociedade onde houvesse como norma o dever de mentir, a vida social já não seria possível. Daí a importância do imperativo moral kantiano: proceda segundo uma norma que possa ser erigida em lei universal para a humanidade. Em outras palavras, decidir moralmente é decidir não em nome próprio, mas em nome de toda a humanidade.

Para compreender de modo prático a importância da moral, basta olhar para o mundo político. Todos sentem as conseqüências negativas da falta de ética no campo da política. A política é a arte de promover o bem comum, a vida feliz para todos. Desvinculada da ética, ela se transforma em politicagem, em busca dos próprios interesses, de mordomias. Sem ética, a porta fica escancarada para toda sorte de corrupção.

Para compreender a importância da moral, pode-se ainda voltar o pensamento para a ecologia. Pela própria experiência, descobriu-se que a relação do ser humano com a natureza, com as coisas, não pode basear-se unicamente no utilitarismo; precisa basear-se em normas éticas universais para que o uso da natureza não se transforme em abuso, destruindo, assim, a possibilidade de vida sobretudo para as gerações futuras. Desvinculada da ética, a própria atividade científica começa a causar medo ao ser humano.

3. A desorientação no campo da moral

Existe hoje uma grande desorientação no campo da moral. Na sua raiz, encontra-se o relativismo. O Cardeal Ratzinger, hoje Papa Bento XVI, se referiu, no discurso de abertura do Conclave, à ditadura do relativismo. Parece que a única verdade universal é que tudo é relativo. O relativismo encontrou amplo espaço, sobretudo no campo da moral. Expressão desse relativismo é a assim chamada ética processual. A noção de bem e mal moral é fruto da opinião pública ou de uma decisão majoritária. O que interessa não é o conteúdo objetivo da norma, mas o processo pelo qual algo se torna moral. Aqui o você decide é a opinião majoritária.

Expressão do relativismo moral é a tendência de natureza neo-positivista segundo a qual, no campo do comportamento moral, não é possível fazer enunciados lógicos e universais, como acontece no campo da ciência. O comportamento moral está sempre envolvido por emoções e outras variantes subjetivas. A moral é pois algo subjetivo.

Após a última guerra mundial, desenvolveu-se a chamada ética de situação. A situação é um somatório de fatores subjetivos, sociais, culturais. A cada momento, o ser humano se encontra numa situação diferente. Deve decidir de acordo com a sua situação.

Ora, o relativismo em geral leva a uma visão superficial da realidade. Dispensa o ser humano de pesquisar a verdade. No campo da moral, ele é um obstáculo ao compromisso sério e duradouro.

4. Como a Igreja vê a moral?

A moral cristã não é um conjunto de normas impessoais dependentes do arbítrio de algum indivíduo. Ela é conseqüência de uma ontologia do ser humano, de uma antropologia, isto é, de uma visão do homem. Cito, a título de exemplo, três elementos dessa antropologia. O ser humano é, antes de tudo, uma criatura. Não é criador de se si mesmo. O seu ser é um dom do Criador. Por isso mesmo, o ser humano deve ser entendido sempre por referência ao Criador. Não só o seu ser em geral, mas também a sua autonomia e liberdade devem ser entendidas por referência ao Criador.

Outro elemento significativo: o ser humano é imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26). Possui algo de divino. Tem uma dimensão transcendente. Participa da sabedoria e providência com a qual Deus governa o mundo. Sua razão não é apenas uma faculdade de conhecimento, mas também moral. Possui a capacidade de descobrir o bem a ser feito e o mal a ser evitado. Trata-se de uma participação na ciência divina.

Pertence também à antropologia cristã, a existência de uma natureza humana. Embora o homem, de um lado, não possa ser compreendido fora de sua situação, de outro lado, ele não se reduz à sua situação. Nele existe um núcleo que transcende todas as situações, todas as variáveis subjetivas, sociais e culturais. É a natureza humana. Ela é o pressuposto para falarmos de dignidade humana, de direitos universais da pessoa humana, de direito natural.

5. A originalidade da moral cristã

Recordo apenas alguns elementos. A moral cristã não é uma moral paralela à lei natural. Ela assume a lei natural à luz do seguimento de Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida. Portanto, tudo aquilo que pertence à lei natural, à moral baseada na razão humana, é assumido pelos cristãos. A fé apenas oferece um motivo a mais para viver de acordo com a lei natural.

Na moral cristã, a noção de mal moral adquire uma profundidade muito grande, expressa pelo vocábulo pecado. Ele não apenas aliena o ser humano com relação a si mesmo e ao próximo, mas também com relação a Deus.

É costume repetir que a moral cristã não é apenas uma moral de atos, mas uma moral da pessoa. E com razão. Para a moral cristã, não basta colocar atos morais. É necessário que a própria pessoa, através da aquisição das virtudes, se torne um ser moral, ou seja, uma pessoa justa, verdadeira, honesta. A árvore boa produz bons frutos. Quem possui as virtudes morais pratica o bem com mais facilidade e de modo constante. Quem não possui as virtudes morais tem dificuldade de praticar o bem. De certo modo, pode praticar o bem acidentalmente.

Finalmente, a moral cristã é a moral da graça. A moral, enquanto conjunto de normas práticas, indica o dever. Não dá força, porém, como observou S.Paulo, para executá-lo. A capacidade de cumprir com o dever, de agir moralmente, provém da ação do Espírito Santo em nós, ou seja, da graça.

Conclusão

Para concluir, quero apontar ainda duas características da concepção que a Igreja tem da moral. Em primeiro lugar, a verdade moral habita no interior do ser humano. Duas coisas escreveu Kant, me causam perplexidade: “sobre mim o céu estrelado e, em mim, a lei moral”. Em segundo lugar, embora a moral tenha diversas fontes, a fonte mais alta da moral, o seu verdadeiro fundamento é Deus. Francesco Alberone, em seu livro traduzido para o português Valores, aponta como fonte mais alta da moral a mística, que consiste na experiência de união amorosa com Deus. A mística tem sido fonte de uma moral universal, moral do amor e da vida. Esta foi a moral de Jesus Cristo e grandes místicos.

1 .Bispo de Lorena, membro da Comissão Episcopal da Doutrina da Fé – CNBB, Supervisor Geral da Formação dos Arautos do Evangelho, e fundador desta revista.

Bibliografia básica

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